Tutela Jurisdicional e Efetividade do Processo
Tutela jurisdicional
Tutelar significa amparar, proteger, defender. E cabe ao Estado proporcionar a tutela jurídica que realiza de duas formas. Na primeira, a proteção estatal manifesta-se sob a forma de regras gerais e abstratas. Gerais por que dirigidas a todos, indistinta e indefinidamente, abstratas por que não tratam de situações concretas, mas de eventos hipotéticos que podem futuramente ocorrer (fato específico legal), estabelecendo as consequências jurídicas (preceito) quando tal hipótese venha a se verificar (2). Na segunda, trata “das atividades destinadas à efetividade desses preceitos ” (3), ou seja, aquela outorgada pelo exercício da jurisdição (4). Uma, a segunda, é dinâmica, em contraposição à outra, que é estática, pois nem sempre “se mostra apta a produzir resultados concretos e efetivos na vida das pessoas ” (5). Como afirma José Roberto dos Santos Bedaque, “não basta que o legislador preveja as situações de vantagem no plano substancial sem que existam instrumentos adequados e idôneos a assegurar sua realização prática” (6).
De efeito, quando o destinatário da norma adota, na situação concreta, uma conduta conforme a descrição objetivada, há o funcionamento normal do direito (7). No entanto se não ocorrer o respeito espontâneo, cumpre ao Estado exercer urna outra e subsequente atividade pata impor a realização pretendida pela norma. Essa função posterior, exercida pelo Estado, que se realiza em complemento à legislativa, adquire o qualificativo “jurisdicional’ e serve para indicar o resultado final da atividade em favor de quem tem razão (8) no plano do direito material. Daí, decorre a indiscutível vinculação da tutela jurisdicional com o direito material. Nesse sentido, assinala Carlos Alberto Garbi: “relacionada que se encontra a tutela jurisdicional diretamente com o direito substancial, o seu entendimento deve ser definido pelas medidas estabelecidas pela lei processual em favor da efetividade do direito material que se pretende ver realizado. A tutela jurisdicional está ligada diretamente à efetividade do processo, considerado genericamente corno instrumento de atuação do direito
Material. A tutela pretendida pelo titular do direito substancial violado só será entregue, como prestação, quando efetivos os meios processuais a fazer atuar o direito em favor da pessoa” (9).
A tutela jurisdicional, portanto, cujo escopo é conceder os mesmos resultados substanciais que se obteria sem a intervenção do Poder Judiciário, isto é, se houvesse um comportamento espontâneo do destinatário da norma ajustado ao direito, é definida e dimensionada pelo direito material (10). É por isso que se pode dizer que somente é merecedor da tutela jurisdicional aquele que tem razão de acordo com o direito material. E, observando-se o resultado da atividade exercida pelo Estado, pode-se dizer que a tutela beneficiará, no processo de conhecimento: 1) o autor, na hipótese de procedência do pedido; 2) o réu, no caso de improcedência (11).
Tutela jurisdicional diferenciada e efetividade do processo
Embora a temática acerca de uma tutela jurisdicional diferenciada, na precisa assertiva de Donald Armelin, prenda-se “mais remotamente a própria questão da indispensável adaptabilidade da prestação jurisdicional e dos instrumentos que a propiciam à finalidade dessa mesma tutela”, ressalta ter sido colocada em evidência diante dos atuais questionamentos sobre a efetividade do processo (12).
Não se pode ignorar que, quando se fala em efetividade do processo , deve-se pensar, inicialmente, em uma tutela jurisdicional idealizada sob a perspectiva do direito material e do direito processual. Como acentua Kazuo Watanabe, “o direito e o processo devem ser aderentes à realidade, de sorte que as normas jurídico-materiais que regem essas relações devem propiciar uma disciplina que responda adequadamente a esse ritmo de vida, criando os mecanismos de segurança e de proteção que reajam corn agilidade e eficiência às agressões ou ameaças de ofensa. E, no plano processual, os direitos e pretensões materiais que resultam da incidência dessas normas materiais devem encontrar uma tutela rápida, adequada e ajustada ao mesmo compasso” (13).
Com efeito, almeja-se que processo civil de hoje seja um processo civil de resultados 14. Por isso, é imprescindível a adaptação (principio da adaptabilidade ou adequação) dos procedimentos às necessidades das relações de direito material. Para isso, conceitos clássicos são revistos, as estruturas dos procedimentos e novos modelos são repensados com o intuito de tornar a prestação jurisdicional mais eficiente, tendo-se em conta a entrega do bom da vida a quem tem direito, conforme deferido pelo direito substancial, e que essa entrega seja realizada no menor espaço de tempo possível.
Essa concepção de processo efetivo já era vislumbrada por Chiovenda no inicio do século XX, como se vê da célebre afirmação reproduzida incessantemente pelos juristas atuais, no sentido de que o processo deve “dar a quem tem um direito, na medida do que for possível na prática, tudo aquilo e precisamente aquilo que ele tem o direito de obter” (15).
Afirma José Roberto dos Santos Bedaque, após louvar-se na lição de Chiovenda acima citada que “efetividade da tutela jurisdicional significa a maior identidade possível entre o resultado do processo e o cumprimento espontâneo das regras de direito material”. Ou seja, a parte somente necessita pedir a intervenção estatal se não houver satisfação voluntária do direito. “Espera-se, pois, que essa atuação possa proporcionar ao titular do interesse juridicamente protegido resultado idêntico, ou, pelo menos semelhante, àquela previsto no ordenamento substancial e não obtido pela vontade do obrigado” (16).
O mesmo jurista faz uma afirmação conclusiva sobre essa questão quando, após discorrer sobre a necessidade de aprimoramento da técnica processual e a organização institucional do organismo que presta a tutela, diz ser necessário “…seja concebida a expressão tutela jurisdicional como garantia efetiva, constitucionalmente prevista, de proteção eficaz e tempestiva ao direito materiai” (17).
E é possível (ou necessário) distribuir o tempo do processo por meio de tutelas jurisdicionais diferenciadas, “elaboradas a partir de técnicas da cognção” (18) ou de execução diferenciadas. Como diz I,uiz Guilherme Marinoni, “a questão da efetividade do processo, pois, obrigou o processualista a pensar sobre tutelas jurisdicionais diferenciadas, isto é, tutelas adequadas às particularidades das situações de direito substancial. Nessa linha, de grande importância é a pesquisa de procedimentos que permitam a realização do direito mediante cognição sumária, pois não é mais possível a confusão entre justiça e certeza ” (19).
Sem dúvida que formas procedimentais nas quais é viabilizado o encurtamento do tempo do processo são técnicas diferenciadas que tem por propósito obviar a prestação da tutela jurisdicional e, evidentemente, tornar o processo mais efetivo. Por isso que a expressão tutela jurisdicional diferenciada pode ser entendida de maneiras diversas: a existência de procedimentos específicos, de cognição plena e exauriente, cada qual elaborado em função de especificidades da relação material; ou a regulamentação de tutelas sumárias típicas, precedidas de cognição não exauriente , visando evitar que o tempo possa comprometer o resultado do processo, como é o caso da tutela antecipada.
Quando se fala em tutelas jurisdicionais diferenciadas sob a perspectiva da cognição sumária, especialmente vertical, a doutrina manifesta preocupação com outro aspecto importante, a segurança jurídica. Um sistema processual pode optar por conceder a tutela jurisdicional segura após plena e exauriente cognição, com o risco de prestar referida tutela inutilmente em face da demora nessa cognição, ou pode estabelecer certos requisitos (verossimilhança, probabilidade do direito, por exemplo) que possibilitem ao julgador antecipar as consequências fáticas da prestação jurisdicional. Nenhuma das alternativas é ideal e isenta de riscos, mas, como afirma Ovídio A. Baptista da Silva “o processualista necessita capacitar-se de que o instrumento com que ele labora não poderá jamais oferecer uma solução absolutamente ideal e imune a qualquer inconveniente”.
Por outro lado, convém observar que, do inciso XXXV do art. 50 da Constituição Federal, já se extrai que não apenas o direito de acesso à jurisdição está assegurado, como o direito à efetiva e pronta resposta do Poder Judiciário. Não obstante, a Emenda Constitucional nº 45, de 8 de dezembro de 2004 denominada “Reforma do Judiciário” por meio da qual se pretendeu tornar a atuação do Poder Judiciário mais eficiente, incluiu o inciso L XXVIII no art. 5º da Constituição Federal, passando a prestação de uma tutela jurisdicional (e administrativa) efetiva a compor, agora de forma explicita, o rol dos Direitos e Garantias Fundamentais (‘Art. 50. “L XXVIII – a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação”).
É também importante lembrar que há uma consciência universal sobre os problemas existentes na prestação da tutela jurisdicional. Como assinala José Carlos Barbosa Moreira, em toda parte, ouvem-se lamentações quanto à duração do processo. Menciona que recentes reformas legislativas realizadas na Alemanha, na Áustria, na Espanha e na Itália tiveram “como principal fonte de inspiração o propósito de atenuar a dramaticidade da situação que se pode observar nessa matéria” (21).
A necessária cautela na criação de tutelas diferenciadas e formas alternativas de solução de litígios
Como se viu, ha uma consciência geral sobre os problemas existentes na prestação da tutela jurisdicional. Muitas são as explicações e as sugestões que se apresentam pelos diversos setores da sociedade. Com efeito, observa-se, atualmente, por exemplo a preocupação dos economistas com a efetividade do serviço jurisdicional, imputando a morosidade da justiça grande responsabilidade peta falta de investimentos e de crédito, à vista das dificuldades que as disputas judiciais representam na solução dos conflitos.
Mas, se o desejo pela ágil entrega do serviço jurisdicional é uniforme entre todos os setores, a preocupação do economista esta ligada a ideia de mercado, rápido trânsito de riquezas e, por isso, deve o jurista preocupar-se com o ideal de justiça, mantendo-se vigilante para que não se privilegie a economia em detrimento dos direitos fundamentais, sem olhar para o lado oposto ao desenvolvimento econômico. Há de se encontrar o necessário equilíbrio para que não se prejudique o desenvolvimento econômico e, ao mesmo tempo, dê-se atenção ao homem, como destinatário do resultado desse desenvolvimento e das normas jurídicas. Noberto Bobbio foi feliz quando disse que “…o problema grande de nosso tempo, com relação aos direitos do homem, não era mais o de fundamentá-los, e sim o de protegê-los” (22).
Os direitos do homem estão bem delineados nos diversos tratados internacionais e nas constituições de cada país, resultado de árdua conquista dos últimos dois séculos. No Brasil a Constituição Federal arrola exaustivamente os direitos fundamentais do homem, elegendo-os como o seu “centro de preocupação”.
Mesmo assim, cabe assegurar a sua efetivação e impedir que sejam violados a pretextos desenvolvimentistas. Como acentua Pierre Massé, “não há que ceder ao fanatismo dos ideólogos, ou dos construtores alucinados do Milênio, que desumanizam a geração presente, em nome do mundo paradisíaco do futuro. Não podemos escolher a escravidão como forma de organização econômica. Implicitamente, os valores éticos desempenham o mesmo papel que as possibilidades físicas. A opção por uma política econômica, como, aliás, por qualquer política, repousa sobre urna ideia de homem” (23).
Essa visão antropocêntrica também foi bem percebida por Carlos Galves quando assim se pronunciou: “O desenvolvimento econômico, no curso de seu desenrolar, não pode, evidentemente, ser feito com o desconhecimento, ou o sacrifício, ou o desprezo, daquilo que constitui, precisamente, a sua finalidade: não pode atentar contra os homens”.
No afã de privilegiar o desenvolvimento econômico, tecnocratas de plantão muitas vezes ignoram os princípios fundamentais, invadindo setor alheio ao seu campo de conhecimento para formular inadequadas propostas com vistas a melhorar a atuação do Poder Judiciário. Como lembra o sempre preciso José Carlos Barbosa Moreira, “combater enfermidades que não se conhecem bem é desferir às cegas golpes na escuridão” (25).
Enfim, não há dúvidas de que a eficiente prestação do serviço jurisdicional é não só um desejo da sociedade, mas um dever do Estado. Essa eficiência, porém, não pode ser buscada em modelos processuais ou Formas alternativas de solução de litígios que venham a romper com princípios que garantem o Estado Democrático de Direito o que, não raro, acontece.